Uma notícia divulgada há pouco tempo chamou atenção do Brasil: vinícolas gaúchas que tinham em seu quadro de colaboradores pessoas atuando em situação análoga ao trabalho escravo.
No entanto, um detalhe não foi percebido por todos: as empresas não eram as contratantes diretas daqueles empregados. Eles, na verdade, eram contratados por uma empresa fornecedora de mão de obra, que contratou os trabalhadores e os deixou em situação extremamente precária, considerada análoga a escravidão.
Em nota, uma das vinícolas disse que: “Durante o período de safra, a empresa recorre à contratação de mão de obra temporária. Estes temporários permanecem em residências da própria empresa, atendendo a todos os critérios legais e de condições de habitação. A empresa ainda recorre, pontualmente, à terceirização de serviços para descarga. Neste caso, o vínculo empregatício se dá através da empresa contratada com o objetivo de fornecimento de mão de obra. No ato da contratação é formalizada a responsabilidade inerente a cada parte“
Resumidamente, a vinícola contratou uma empresa que se responsabilizou pela alocação de trabalhadores em funções muito específicas, relacionadas com a colheita da uva.
Porém, embora as vinícolas não fossem as responsáveis diretas pela contratação dos trabalhadores, elas foram diretamente responsabilizadas, com prejuízos incalculáveis especialmente a sua imagem, que foi ligada a exploração e a exposição de trabalhadores a situação degradante, que culminou, inclusive, com campanhas de boicote às marcas.
Essa parte da informação você certamente acompanhou, correto? Agora me conta, quem é o (ou quem são) verdadeiramente os responsáveis pelos trabalhadores que estavam em condições análogas ao trabalho escravo e, ao mesmo tempo, quem será responsabilizado?
O que diz a lei sobre o trabalho análogo à escravidão?
Antes de responder ambas questões, é melhor entender o que diz a lei sobre o trabalho análogo à escravidão. De acordo com o Ministério do Trabalho e Previdência, considera-se trabalho em condição análoga à de escravidão as atividades que resultem em: “a submissão de trabalhador a jornada exaustiva; a sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho”.
O empregador que submeter seu colaborador a essa situação sofrerá consequências estabelecidas em lei, que incluem pena de reclusão e multa. No artigo 149 do Código Penal destaca-se que, no Brasil, ninguém pode submeter outra pessoa ao trabalho forçado, condições degradantes ou restringir a locomoção em razão de dívida. A pena é aumentada se o crime for cometido contra crianças e adolescentes ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Relação da terceirização com o trabalho escravo
O Brasil tem hoje mais de 12 milhões de trabalhadores (22% dos empregos no país, segundo dados do IBGE) atuando formalmente como terceirizados. A Reforma Trabalhista de 2017 alterou alguns pontos que tratavam das atividades terceirizadas, possibilitando a terceirização de todas as atividades empresariais.
A terceirização se tornou, dessa maneira, uma tendência – que é acompanhada em outras partes do mundo. Além da flexibilização legal, também destaca-se o aumento no número de terceirizados por conta da pandemia de Covid-19, que modificou as formas de atuação de muitos profissionais.
Apesar de terceirizados, os colaboradores nessa modalidade de contratação também têm direitos estabelecidos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ou seja, os trabalhadores devem receber salário mensal, benefícios trabalhistas, aviso prévio, assinatura em carteira de trabalho, equipamentos de proteção individual, jornada de trabalho compatível, etc.
No caso das vinícolas gaúchas e de outras empresas brasileiras denunciadas por trabalho análogo à escravidão, é comum encontrar a justificativa ou o preceito de que quem cometeu o ilícito, na verdade, foram empresas terceirizadas. Mas será que essa justificativa pode ser utilizada como defesa das contratantes?
Qual a responsabilidade das contratantes?
Se você é empresário (a) pode ter ficado reticente sobre as consequências de contratar uma empresa terceirizada e a mesma ter trabalhadores em tais situações, correto? E aqui afirmo: esse é realmente um motivo que deve fazer parte da preocupação das empresas brasileiras. Sabe o por quê?
Quando ocorre a terceirização, a responsabilidade das empresas quanto ao colaborador é dividida. Quem terceiriza é responsável pela fiscalização do cumprimento do contrato e, quem presta o serviço deve cuidar de todas as atividades estabelecidas em lei e em contrato.
A Lei trabalhista brasileira prevê ainda que durante a execução de serviços em uma empresa que contratou a outra, os colaboradores terceirizados devem ter as mesmas condições de trabalho relativas à alimentação em refeitórios, serviço de transporte, atendimento médico, tratamento adequado e condições sanitárias e proteção à saúde.
Voltemos ao caso das vinícolas gaúchas. É certo que os colaboradores que atuavam na modalidade terceirizadas, deveriam, em tese, ter os mesmos direitos às condições de trabalho que os colaboradores diretamente contratados tinham, certo!?
Pois bem, é exatamente por isso que as empresas que contratam os serviços de terceirização também podem ser responsabilizadas pela atuação em trabalho análogo à escravidão. Nesse caso, o MTE pode responsabilizar de maneira subsidiária, já que o crime foi cometido nas fazendas da vinícola e que, especialmente, a partir do momento em que há a contratação de empresa terceirizada, a contratante tem como responsabilidade direta a fiscalização da execução do trabalho.
A responsabilização de tais empresas acende um alerta para todas as demais que atuam com terceirização: é preciso estar atento e fiscalizar o trabalho contratado. Sua empresa realiza esse trabalho constantemente?